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sábado, 11 de junho de 2011

Encontro com Freud

Tamanho da fonteDepois que a gente passa a descrer das coisas e a tornar-se insegura, só a psicanálise pode nos apontar uma saída.

Não fui preparada para ser cantora. Tive uma educação normal em Porto Alegre e pretendia ser professora. É verdade que eu cantava, mas só de brincadeira. E, de repente, aconteceu o sucesso. E, com o sucesso, as mil solicitações. De uma hora para outra, passei de ser humano a simples mercadoria. Virei máquina de fazer dinheiro. Para mim e para os outros. E, se hoje faço psicanálise, é precisamente uma consequência desse sucesso para o qual eu talvez não estivesse preparada.

Com a fisionomia ainda sonolenta – acabara de acordar – Elis Regina me recebe em seu apartamento e me fala, sem inibição, do seu encontro com Freud:
Até agora eu só fui ao psicanalista duas vezes. Por enquanto, estou achando tudo muito engraçado. Principalmente quando o implacável interrogatório do analista me revela algumas falcatruas que fiz comigo mesma. Eu sempre fui alegre: é o meu normal. Mas hoje sou uma pessoa agitada, o que é diferente de ser alegre. Trabalho demais, não paro. Mas, no ano passado, foi pior: segunda-feira em São Paulo, terça em Belém, quarta em Recife. Muitas vezes acordava e não sabia em que estado me encontrava. E isso, para quem ainda não tinha 20 anos, era simplesmente terrível. Pouco a pouco, fui perdendo a noção das coisas, não sabia bem o que estava acontecendo, deixei-me envolver de tal modo nessa agitação diária que acabei agindo como um autômato. Logo surgiram os traumas. Mas os meus traumas não são uma consequência, apenas, do meu trabalho excessivo. Vários outros fatores são também responsáveis por eles. Um deles, talvez o mais importante: não recebi uma educação adequada para viver no meio artístico. É claro que o artista não precisa ser, necessariamente, um desajustado ou um neurótico. O que acontece é que ele tem um certo grau de sensibilidade que faz com que as coisas o afetem mais profundamente. A minha sensibilidade é extrema e, por causa dela, sofri vários choques quando atingida pela falta de sinceridade, honestidade, dignidade e seriedade demonstradas por pessoas com que tinha de tratar. Isso me trouxe muita insegurança. Passei a achar que todas as pessoas que me rodeavam eram ótimas, e isso me trouxe novas decepções. Busquei carinho num meio em que as pessoas tinham o mesmo tipo de atividade que eu. Mas, onde há concorrência (palavra que odeio, mas que é um verdadeiro estado de espírito para muita gente), ninguém se preocupa em saber se o próximo necessita ou não de carinho, muito mais do que de dinheiro ou de fama. A insinceridade me apavora. Quando não gosto de alguma coisa, sinto necessidade de dizer não gosto, mas a maioria das pessoas acha que a gente deve dizer que gosta, só para agradar. E o que é pior: agridem sempre todos os que dizem o que pensam. Sempre liguei muito para o que as pessoas diziam de mim, sempre quis saber o que pensavam a meu respeito. A psicanálise está me ajudando muito: já não preocupo com isso. Ou melhor: já procuro não me preocupar. Cheguei à conclusão de que ninguém, nunca, nos conhecerá realmente. Aprendi também que não se pode ser vulnerável diante das pessoas que nos rodeiam. Eu perdi a noção do que querem de mim as pessoas que me cercam, perdi a confiança em mim e no resto. Só acredito numa meia dúzia de pessoas no mundo, que são meus amigos sinceros. Jair Rodrigues, por exemplo. Eu acho que Deus fez quatro raças: branca, preta, amarela e “jair rodrigues”. Se houvesse uma raça de “jair rodrigues”, o mundo estaria salvo. Além disso tudo, eu também tive a “minha infância”, que foi anormal dentro de uma certa normalidade, em que me senti prisioneira de carinho e amor excessivos: eu era a única menina de uma grande família e, por isso, todos os tios e tias queriam determinar o que eu podia ou não podei fazer. Tudo, é claro, com a santa intenção de me ajudar. Mas era um carinho opressivo. Parecia que todos, ao meu redor, se sentiam donos de mim. Essa sensação de ser propriedade alheia, voltei a senti-la quando o sucesso me transformou em mercadoria. É terrível essa sensação de não nos sentirmos donos de nós mesmos.

É com um sorriso triste que Elis Regina lembra de seus dias de menina normal e anônima em Porto Alegre:
Sinto muito a falta de minha família. Porque no fundo, apesar de toda essa agitação que me cerca, sou uma pessoa tranquila. Considero-me alguém a quem roubaram uma de suas coisas mais queridas: o convívio familiar. Mas tive que optar: a família ou a minha carreira. Mas o fato é que não nasci para ser só, ou para viver só.

Mas além da solidão, o amor também é responsável pelo tratamento psicanalítico de Elis. Ela conta que esteve apaixonada por um rapaz - “a pessoa mais notável que conheci” - ainda em Porto Alegre. Ia tudo bem até que “ele” deu o ultimato: não queria que ela cantasse. Claro, o noivado acabou. Tentaram ambos uma reconciliação, no ano passado, mas novamente não deu certo. Mas Elis acredita que aquele amor perdido poderia lhe ter trazido a felicidade. Mas agora é tarde”, diz ela.
A uma coisa, contudo, não renuncio: casar e ter filhos. Porque essa é a natureza da mulher, e não há como fugir dela. Não acredito, porém, no amor romântico, capaz de qualquer coisa. E eu jamais me casaria com um homem pelo qual sentisse esse tipo de afeição. Tal espécie de carinho, se existe, tem vida breve. E se não houver amizade (“esta, sim, existe. E é bonita pra burro. Tem muita amizade bacana”), não sobra nada. Você quer um exemplo? Eu eu Jair Rodrigues nos “casamos” para um trabalho com música. Se nós não tivéssemos nos tornado grandes amigos, a todo momento a dupla poderia se “divorciar”. Entretanto, não corremos tal risco, pois há muito mais em torno de nós que um simples número musical, por melhor ou mais perfeito que ele seja.

Na vida profissional de Elis Regina, existe um apavorante fantasma a lhe dominar todas as horas e todos os movimentos: é o empresário.
O empresário é a máquina que nos tritura diariamente. Uma máquina implacável que faz da gente o quer e quando quer, sem levar em conta os nossos sentimentos e até mesmo o estado de nossa saúde. Quando essa engrenagem se apoderou de mim, eu era uma menina desarmada e sem experiência. Alcancei o sucesso antes da maturidade, e nem cantar direito eu sabia. Mas aconteceu que tudo o que eu cantava dava certo e eu deixei a coisa correr, porque estava tendo sucesso. O pessoal dizia que eu era uma cantora popular e, por isso, teria que fazer discos comerciais. Não concordo com isso. E, em consequência, acabei de gravar um LP para o qual selecionei eu mesma as músicas, sem interferência de ninguém. Eu não podia ficar eternamente gravando ”mais um show ao vivo no Teatro Record”. Meu último LP, num gênero diferente, menos comercial, é para mim um começo de libertação interior. Uma espécie de reencontro com uma pessoa que se chama Elis Regina. Com ele, começo a minha “cura”. Há um ano que venho tentando fazer análise e não consigo tempo, mas agora estou levando a coisa a sério. Depois que a gente passa a descrer das coisas, a tornar-se insegura, intranquila, só a psicanálise pode nos apontar uma saída. A minha vida privada foi totalmente perturbada e quase destruída pela minha vida artística. Eu nunca mais tive tranquilidade de um lar, nunca mais pude viver num ambiente familiar. Pensei em trazer minha família para o Rio, mas desisti porque sei que minha mãe nunca suportaria me ver chegar em casa às três da madrugada, cansada, sem horário para as refeições etc. Nem eu ia viver bem, constantemente observada, nem ela, gravitando em torno de mim. Certamente, voltariam todos aqueles problemas oriundos do carinho opressivo, a que já me referi.

Pergunto a Elis se ela aconselharia a algum outro artista a fazer psicanálise, e a resposta vem imediata:
Roberto Carlos. Ele também está com a vida privada toda bagunçada. Ele também esta rodeado por muita gente, sem saber quem são os seus reais amigos. Eu aconselharia Roberto Carlos a fazer análise porque já vi de perto algumas reações suas, como uma consequência de sua extrema sensibilidade.

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